A crise da identidade humana
Em uma coluna anterior, tratei do fenômeno dos bebês reborn como um sintoma do colapso emocional e espiritual da sociedade contemporânea. Hoje, gostaria de aprofundar esse diagnóstico à luz de um outro fenômeno crescente: os chamados Therians — pessoas que afirmam sentir uma conexão existencial com animais e, mais do que isso, se identificam como tais. Em redes sociais, não é incomum ver indivíduos usando máscaras de cachorros, latindo, uivando ou mesmo andando de quatro com um rabo preso à calça, buscando, segundo dizem, fidelidade ao animal com o qual se identificam. O absurdo, que à primeira vista pode parecer apenas excêntrico, revela uma crise profunda. Trata-se de pessoas reais dizendo ser gatos, vacas, lobos ou qualquer outra criatura, abandonando sua identidade humana e abraçando uma "realidade" alternativa. O mais impressionante não é apenas o comportamento isolado, mas o fato de essa disfunção ser acolhida, promovida e até romantizada por setores da cultura digital.
Um caso emblemático é o do britânico Thomas Thwaites, que, aos 34 anos, declarou-se cansado de ser humano e decidiu viver como cabra nos Alpes Suíços. Para isso, mandou fabricar próteses específicas para imitar o corpo do animal e buscou apoio psicológico para "desconectar-se" de sua condição humana. Thomas desejava experimentar a alegria que via em seu cachorro de estimação — como se a felicidade estivesse ligada à negação de sua própria natureza racional e espiritual.
Mas por que abordar esse tema? Porque ele aponta para algo maior do que uma simples excentricidade. Trata-se de um sinal de alerta. Estamos diante de uma geração que, em sua dor e solidão, tem renunciado à própria dignidade. Quando uma pessoa sente que precisa deixar de ser humana para experimentar alegria, algo está quase que irremediavelmente errado. Essa é uma evidência clara de que falhamos — como sociedade, como cultura e como comunidade humana.
A Escritura Sagrada afirma, logo em suas primeiras páginas, que o ser humano foi criado "à imagem e semelhança de Deus" (Gn 1.26,27). Essa identidade não é apenas teológica, mas profundamente existencial. A imagem de Deus no homem confere-lhe dignidade, racionalidade, relacionalidade e propósito. Não somos apenas um amontoado de desejos e impulsos, mas seres dotados de um sentido maior: viver para a glória de Deus. Ao perder essa referência, resta-nos o colapso do significado, substituído por fantasias, fugas e deformações. A dor não é o problema em si. Todos nós enfrentamos lutas, decepções, frustrações e sofrimentos. No entanto, quando essas feridas não encontram acolhimento, verdade e amor — quando não são tratadas com graça e esperança — o adoecimento da alma se torna inevitável. É nesse vazio que nascem as distorções: alguns procuram consolo em bonecos, como os reborns; outros, em personagens animalescos; e muitos, simplesmente, perdem a vontade de existir. A geração atual está gritando silenciosamente. Quando adolescentes se sentem mais confortáveis interpretando animais do que sendo humanos, quando adultos criam vínculos emocionais com objetos inanimados, é preciso parar e perguntar: onde foi que nos perdemos? Em que ponto deixamos de compreender o valor inegociável de ser humano?
Não se trata de julgamento moral ou zombaria — essa nunca é a proposta de uma análise séria, sobretudo aqui em nossa coluna. Trata-se de lançar luz sobre o adoecimento existencial que se alastra. A desordem da alma se tornou epidemia silenciosa. Precisamos, com urgência, parar e refletir. Precisamos olhar para nós mesmos, para nossos filhos, para nossos alunos, para nossa cultura, e reconhecer os sinais de um esvaziamento do ser. Mais grave do que alguém cuidar de um boneco como se fosse um bebê real, ou se comportar como um animal, é ver a sociedade normalizar tais práticas, promovê-las como alternativas legítimas de identidade, e até celebrá-las como expressão de liberdade. O problema não está apenas nos indivíduos, mas na cultura que desistiu de apontar o caminho da dignidade, da verdade e da transcendência.
A Bíblia nos oferece outro caminho. Em Cristo, somos chamados a recuperar o sentido da existência: Em Jesus "estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento" (Cl 2.3). Somente nele podemos reencontrar quem verdadeiramente somos. É olhando para o Criador que descobrimos a beleza da criatura. É voltando à fonte que redescobrimos o propósito. Se nossa geração continuar buscando sentido em fantasias, acabará abraçando o vazio. Se recusarmos a verdade sobre Deus e sobre nós mesmos, nossa humanidade será inevitavelmente corroída. E, como disse C.S. Lewis, "quando tudo é permitido, nada é significativo" - é o precipício desumanização.
IGREJA BATISTA DO ESTORIL - 63 anos atuando Soli Deo Gloria