
(...) O luto pode ser considerado elaborado quando a imagem do falecido é internalizada, ando a fazer parte apenas das memórias do enlutado. Neste momento, a pessoa pode retomar sua vida, estabelecer novas relações e reinvestir a energia psíquica antes dirigida ao morto” (...)
Era um dia azul. Amo os azuis, mas esse, especificamente me pareceu um azul idiota, como se as coisas todas estivessem bem. E nunca tudo vai bem.
As nuvens me pareciam estúpidas, sol estereotipado de dia bom que não era. Quebrei, em desatenção, a sua xícara opalina azul verde, a que você mais amava. Eu, no fundo queria destruir tudo o que fosse azul.
O enterro da minha mãe não podia ser azul. Inimaginável um tempo assim, num dia desse.
Eu pensava que chovesse enxofre, que o céu se partisse craquelado sobre o mundo, que tudo desmoronasse e se embargasse igual a minha garganta quando disseram, na noite anterior que descera em lápis lazúli: "Ela se foi".
Quem fala assim?
"Foi pra onde?", eu quis perguntar, mas o que saiu da minha boca foi um grito que parecia, nunca mais teria fim. Eu gritei tão alto que o cachorro do vizinho grunhiu e isso me deu um reasseguramento estranho, — não era possível que o mundo não sentisse nada enquanto eu me rasgava ali ao meio, dilacerada, à sombra medonha do desamparo —, enfim, não era possível que isso não doesse nem causasse qualquer coisa na ordem universal das coisas: e a lealdade de sentir. Eu queimava por dentro e ninguém via.
Pasmei no sofá, imóvel feito um peso também morto, mas sonoro, chorando. Pensava: de quem era a culpa. Dela? Minha? Do hospital? De todos nós?
Por que você foi embora? Por que não me esperou? Por que não ficou mais um pouco? Por que me deixou aqui com esse silêncio que grita toda madrugada e me tarja a mente e me inflama o coração?
Eu imaginei arrancar com as mãos, amassar e jogar fora o céu azulzinho dos felizes. Enfiar os dedos nas nuvens até fazer buraco para não encontrar nada lá dentro e acusar: veem a ilusão? Não há nada adiante. E esse nada talvez seja mesmo o destino, enfim.
Gritar lá dentro desse buraco, vácuo de nuvens, depositar ali algo da minha imensa e sufocante raiva até que alguém, enfarado de tal escândalo de criança dolorida me devolvesse o que foi roubado.
— Você ouviria, mãe, se eu gritasse mais alto? Você me encontraria?
Ou talvez você estivesse nalgum assovio ou partícula desse vento absurdo que bateu na janela quando então desabei. Te encontro na música “Vento”, de Los Hermanos, que me navalha a carne, assim como quando vejo um beija-flor.
Eu me odiei e me coloquei no rol da menor das criaturas por sentir raiva de você. Eu me odiei por te amar tanto. Eu gritei com Deus, com a parede, com as suas coisas. Com o espelho. Gritei comigo. Escrevi um livro em que lhe maldisse a retirada na mesma proporção do que pudesse te honrar.
E daí, silêncio. Depois que o grito secou, preso feito um pássaro de vidro entre minhas costelas, batendo asas toda madrugada, tentando escapar e me doendo absurdamente. Eu ouvia seus trinados — a aflição de uma agonia que não grita exatamente.
O céu então me chamava. Quanto eu quis também morrer.
Depois que o grito secou na minha garganta, ficou aquela fumaça dos cigarros que lhe tragaram. Do lento suicídio que você perpetrava a cada trago. Um silêncio de cinzas.
Eu olhei para o chão — os cacos da xícara ainda lá. A que você usava todo dia. Aquela opalina-azul-verde desbotada com uma lasca que você dizia que "dava sorte", porque tinha sobrevivido às minhas quedas de criança.
Agora ela não sobreviveu à minha queda de adulta.
Toquei os cacos com a ponta dos dedos. Cortei o polegar. Sangrou pouco, o corte era honesto. Direto. Dolorido do jeito certo. Muito mais fácil do que essa dor sem nome que andava pelos meus ossos, essa puxada de tapete assim, susto, sem mais.
Eu me deitei no chão da sala. E fiquei ali. Sem pensar. Ou pensando tudo de uma vez.
A sua voz que ria, mesmo quando o mundo caía, estava ali. Aquela sua mania de repetir histórias que eu fingia já saber só para ouvir de novo, ou pedir que a resumisse, porque você sempre foi prolixa e detalhada.
Eu então disse para o teto:
— Eu me lembro do dia em que você me ensinou a amarrar os tênis, a fazer bolo, a dobrar roupas. Mas, o teto não respondeu.
Eu queria que você voltasse só para brigar comigo por ter definitivamente quebrado a xícara. Só para me fuzilar com aquele olhar que só você conseguia para, no fim, eu sabia, me dar um chocolate ou um beijo duro e desajeitado na testa.
Mas você não estava. E eu estava.
Eu.
Inteira e aos pedaços ao mesmo tempo.
Fiquei ali até escurecer. As sombras eram braços. Quase como se fossem os seus.
Fechei os olhos.
E pela primeira vez desde o grito, chorei fundo, em silêncio.
Chorei criança. Sem colo.
Acordei dois anos depois com a luz atravessando a cortina. Era um dia normal. Sem raiva, sem grito, sem pressa. O silêncio estava diferente. Não mais um inimigo; um velho conhecido de outras guerras, talvez.
A casa ainda carregava e tenho a impressão de que sempre carregará, sem volta, o seu cheiro.
Uma lista de compras na mesa, escrita com a sua caligrafia redonda. "Alface, ovo, jiló, laranja, paciência." Você sempre escrevia "paciência" no fim da lista, para me provocar, me ensinar. Mãe é pedagógica. Ou para aprendê-la?
Abri a janela. O vento – sempre ele - trouxe um murmúrio. Fechei os olhos.
E então, como se não fosse sonho nem vigília, você veio, depois do vapor do café, sentou-se no banco como se tivesse crescido da madeira. Seus olhos eram espelhos. Vi minhas mãos de criança. Você cheirava a brisa de floresta e lar. Estava com aquele vestido florido que você dizia que te fazia parecer viva. E estava. Viva. De um jeito que eu não entendia, mas aceitava.
— Oi, mãe — eu disse.
Você sorriu. O mesmo sorriso que precedia seus conselhos, ou suas broncas disfarçadas de carinho.
— Já ou a raiva? — ela perguntou.
Engoli em seco. Quis pedir desculpas. Quis dizer tudo que não disse. Mas, você balançou a cabeça como quem já sabia.
— A raiva é também um jeito de amar, quando não sabe para onde ir — você falou, olhando para o céu, o azul.
Sentei-me ao seu lado. Ou imaginei. Ou fui criança de novo. Não importa. Você estava lá. E, por um instante, tudo era como antes.
— Eu achei que ia te esquecer, mãe. Que com o tempo, você sumiria, evaporada no ar.
Você pegou minha mão. E havia quentura e firmeza nela. Me olhou diretamente.
— Só mudei de endereço.
Desviei o olhar. Juntei os cacos da xícara, um sorriso quebrado aqui. Um silêncio de chumbo ali.?Busquei na dispensa meu material de arte, sempre ela para me remediar um pouco quando as coisas começam a seguir para o impossível. Preparei a liga dourada do Kintsugi com a ritualização para o preparo de algo que parecia uma oferenda. Pó de mica, ouro e cola. Paciência, enfim entranhada. Meus dedos acompanhavam com o pincel o traço da fratura, cicatriz ainda sensível.
Enquanto colava, ouvi um estalo leve. Não da porcelana — mas dentro de mim. Como se algo antigo estivesse se reencaixando também ou se quebrando de vez. Colei os cacos em Kintsugi, a tal técnica japonesa de emenda de rachaduras em cerâmica e porcelana com ouro em pó, tornando as quebras cicatrizes douradas para valorizar a experiência. Cada fissura recebia o ouro como reparação, o perdão possível.?
Eram rachaduras, sim. Mas agora, não mais engolidas, negadas, disfarçadas. Não escondi o que quebrou. A xícara, antes comum, cotidiana, habitual, no que isso traz de cansativo, virou uma espécie de relíquia.?Não uma lembrança dela. Mas um corpo dela.
Aquela lasca que um dia ela disse que "dava sorte", era costura visível entre mundos. Era como se eu estivesse emendando o tempo. Dando continuidade ao que a morte interrompeu. A xícara me falava: “a perda a gente não desfaz, somente a atravessa.”
Segui à cozinha, fiz café. Mais aguado e adocicado. Como ela gostava. A luz do sol mais densa. O cheiro de café subiu e me trouxe uma memória qualquer da infância. As paredes me ouviram. A casa, cúmplice, pareceu exalar alguma quentura.
Outra xícara.
A remendada repousava ao lado, na dignidade possível, feito uma anciã que já ultraara o estado de lágrimas. O vapor que subia me apaziguava como ainda não acontecera, desde o a sua ida, eu não estava mais condenada a me pendurar no vazio absurdo da saudade, esse varal dos domingos.
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